“Melhor ser sem-vergonha do que ser vítima”, costumava dizer Gabriela Leite. Durante toda sua trajetória no movimento de prostitutas, encerrada no último dia 10 de outubro em virtude de um câncer, Gabriela atuou em benefício dos direitos, da autonomia e da dignidade das trabalhadoras sexuais, mobilizando de maneira pioneira um segmento da população desde sempre marginalizado por discursos morais e religiosos.
A ativista nasceu em 1951 em São Paulo, em uma família de classe média. Estudou sociologia, tendo optado pela prostituição primeiro na cidade natal e, posteriormente, em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro. Nos anos 1980, iniciou uma mobilização de alcance nacional através de encontros nacionais da categoria. Sobretudo nessa década, por causa do surgimento de Aids, Gabriela representou uma figura importante para os direitos sexuais das profissionais, apresentando o direito à saúde como inalienável. Lutou, nesse sentido, pela cidadania das prostitutas, diante de uma doença que trazia o rótulo discriminatório contra minorias sexuais, os chamados “grupos de risco”.
Gabriela constituiu um marco para a resposta brasileira ao HIV/Aids – resposta esta que seria internacionalmente reconhecida anos mais tarde –, mobilizando discursos contra representações que associavam a doença a grupos sociais específicos. A ideia de prostituição que ela defendia não passava pelo estereótipo da vitimização. De acordo com ela, compreender as “putas” – ela não se incomodava com a nomenclatura – como vítimas era deslegitimar o trabalho sexual. Era também uma forma de discriminação. Por isso, achava melhor ser considerada “sem vergonha”.
Tal compreensão desdobrou-se em inúmeros projetos. Nos anos 1990, fundou a ONG Davida, cujo objetivo inclui estimular o protagonismo social, reduzir as vulnerabilidades da categoria e promover esforços em nome de direitos e benefícios legais. Em 2005, criou a grife Daspu, voltada para a produção de roupas e coleções que financiassem projetos para as prostitutas.
A trajetória de Gabriela colocou as trabalhadoras sexuais na agenda política nacional. Ainda que os estigmas permaneçam, as mobilizações e iniciativas firmaram um espaço de defesa e promoção de direitos. Em 2009, lançou o livro “Filha, mãe, avó e puta”. Em 2010, foi candidata à deputada federal. Embora não tenha sido eleita, sua história faz parte do Congresso Nacional. Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 4.211/2012, de autoria do deputado Jean Wyllys, que busca regulamentar a profissão, reconhecida pelo Ministério do Trabalho, mas, na prática, carente de benefícios e direitos que outras profissões possuem.
O projeto, batizado de Lei Gabriela Leite, define a prostituta como pessoa maior de 18 anos que presta serviços sexuais, voluntariamente, mediante remuneração. Regulamenta também as casas de prostituição, criminalizadas pelo atual código penal brasileiro; estabelece uma aposentadoria especial para a categoria e define exploração sexual.
O projeto constitui um instrumento importante no atual cenário brasileiro, no qual forças religiosas conservadoras e dogmáticas se esforçam para barrar e retirar direitos no campo da sexualidade. Tem sido recorrente, no plano das representações, a associação entre prostituição e exploração/tráfico. São coisas diferentes, conforme Gabriela Leite sempre deixou claro. A prostituição, para ela, era um trabalho digno, não uma imposição ou um fardo moral.
Leia abaixo homenagens a Gabriela Leite.
Publicada em: 14/10/2013
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